Aug 22, 2009

Ficção e real: o desafio da literatura

Segue o prefácio do livro na íntegra, escrito por Márcio Tavares d'Amaral - pós-doutor pela Université de Paris V (Sorbonne) e Professor Emérito da Escola de Comunicação da UFRJ. Como eu costumo dizer, o prefácio já vale o livro.

Ficção e real: o desafio da literatura
Por Marcio Tavares d’Amaral

Vivemos um tempo curioso. E estimulante. Há os que têm medo, ficam ressentidos, e reagem mal. E há os outros. Leonardo Schabbach Oliveira é dos outros. Não renuncia a pensar, quando não se sabe mais se o pensamento ainda alcança o cerne das coisas, não se sabe nem se ainda há coisas sobre as quais valha a pena pensar, muito menos se nelas ou na nossa relação com elas reside e resiste alguma verdade, nem, aliás, se ainda se pode falar de verdade. Grandes dúvidas, certezas negativas para os apressados, catástrofe de fim de mundo para os temerosos, aventura para os que acreditam que pensar não é a experiência do peso sério, mas uma leveza e um riso.

Nosso tempo é assim: alguns filósofos, sociólogos, epistemólogos nos dizem que o real, o velho e bom real que se caracterizava por ser o que é independentemente do olhar que nós humanos lhe lançássemos, não há mais. Não que tenha simplesmente deixado de existir: perdeu o interesse. Porque interessante na nossa época é o virtual, o conjunto de potencialidades de alguma coisa se dar em ato, acontecer. O acontecimento, que pode advir ou não, dispensa o Ser, que só pode ser. Poder e não poder, ao acaso dos acontecimentos, é a riqueza nova do virtual, das virtualidades. Diante de poder e não poder, o Ser, que só pode ser, e não não-ser, se empobreceu. E a nossa época não tolera a pobreza e a simplicidade das coisas que simplesmente são. E se o real se esvaziou de interesse, esforçar-se por representá-lo para nós é perda de tempo, é ato ineficaz. E a eficácia é regente do nosso tempo. Isto significa: se é da eficácia que se trata, que sentido pode ter uma questão como aquela que a filosofia insiste em formular há 25 séculos, a questão do sentido, pergunta de criança: o que é isso? Se já não se pergunta é porque não se faz mais questão, deixa-se ir o mundo, sem saudades. A saudade do mundo é a nostalgia da Verdade. E Verdade, dizem-nos, não há mais. Nas sociedades da eficácia tecnológica e do consumo globalizado a ânsia da Verdade é uma sobrevivência antiga, sem viço e vigor. Verdade se tornou uma ficção.

É aí que Leonardo Schabbach entra como um dos outros. Não lamenta o real perdido, a verdade aposentada, a impossibilidade da representação, o desinteresse pelo que possa se reivindicar como fundamento. Ele, ao contrário, levanta a luva do desafio para aceitar esses vereditos extremos como verdadeiros deslocamentos, e opera neles. A verdade é ficção? Seja, se for indispensável aceitar essa denegação para continuar a pensar; mas aceitemos também que a ficção se mudou para o real. O real, dessubstancializado, já não impregna o pensamento. Mas isso é porque mudou sua natureza, tornou-se simulacro, real-simulado (verossimilhança na ausência de verdade), e converteu-se assim ao estatuto da ficção. E também o contrário: a ficção, provocando possíveis, é ela mesma um real-simulado, simulacro-real. A nova ficção, a do nosso tempo, que no livro Leonardo esmiúça em exemplos, é produtora de verdades. Se antes a verdade pertencia e aderia ao real e a ficção especulava, agora, quando a realidade é simulada, para ter interesse como virtual, quem diz a verdade da simulação é o que nela se ficciona, os seus possíveis. Ficcionar o real como virtual é o de que hoje se trata. É isso que a ficção faz, ficcionar. O sentido e o interesse do real-simulado é operado pela ficção. Ainda se trata de literatura, quando dizemos ficção? Sim. Há exemplos no livro. E também não: quando o que conta é a eficácia, a velocidade, a fragmentação do poder das tecnologias, é dos meios de comunicação que se trata. E isto significa: a verdade ficcionada do real simulado é em larga medida da ordem da informação circulada pela mídia, mercadoria simbólica, imaginarização do mundo. No interstício entre a nova ficção e a mídia passam a consciência (que já não é um aparelho auto-reflexivo), as identidades (que não são mais sujeitos-indivíduos) e as relações sociais e de poder (que não mais passam pela exclusividade do Estado e da política, da organização identitária e das lutas). Consumo de si, projeto de si, disseminações horizontais, multidões, novos arranjos de comunidades virtuais: é aí que habitam os sujeitos, as identidades, as relações e poderes que, para bem e para mal, vão sendo chamadas de pós-modernas.

É por esses caminhos de combate que passa o livro, e continuam passando os estudos de Leonardo Schabbach Oliveira. Analisa o ambiente do real e da ficção modernas, mas não lamenta a sua perda. Aliás, ainda seria necessário demonstrar que houve essa perda, e que ela é definitiva, já que a história acabou (dizem), e o passado não é mais o doador universal de sentido. Enquanto isso não se demonstra, nem o contrário, Leonardo analisa também o ambiente pós-moderno e a ficção que lhe corresponde. Estuda e compara. Não rejeita, não reage, não se ressente. Trata de agir. Porque agir, é bom não esquecer, é a matéria viva do pensamento.

O resto é ficção.

No comments:

Post a Comment